quinta-feira, 5 de novembro de 2009

A fragmentação do saber esportivo ,João Paulo Medina

A fragmentação do saber esportivo


-Parte 1
Uma reflexão filosófica sobre a produção de conhecimentos no futebol
João Paulo Medina
Este ensaio foi originalmente publicado em 1992 no livro Educação Física & Esportes: Perspectivas Para o Século XXI, 1992, pela Papirus Editora, encontrando-se em sua décima edição. Por se tratar de um dos poucos estudos antropológicos sobre o futebol, o texto aqui publicado foi atualizado e adaptado pelo autor e se propõe a contribuir com aqueles que querem fazer uma reflexão mais crítica, no sentido político-filosófico, sobre a prática do esporte e, particularmente, sobre o futebol.

Parte 2

A prática do esporte, em especial do futebol, não é boa nem má, por si só. Ela apenas reflete os valores vigentes na sociedade.

Conhecimento e esporte competitivo

"Especialismo é saber-se cada vez mais de cada vez menos até saber-se
tudo de nada; do mesmo modo que generalismo é saber-se cada vez
menos de cada vez mais, até não se saber nada de tudo."
(William James)

Um problema-chave deste início de século 21, a ser enfrentado por todos aqueles que buscam uma garantia de humanização no processo de desenvolvimento das profissões (em direção ao trabalho não-alienante), refere-se à questão da fragmentação do saber, para a qual a relação das forças produtivas parecem nos empurrar quase que inexoravelmente. O conhecimento científico e tecnológico, sintonizado com essas forças e, muitas vezes, patrocinado por elas, priorizou o lucro a limites patogênicos, auxiliando - é preciso reconhecer - na conquista de alguns bens materiais e culturais que facilitaram a vida de muita gente e aliciando o desejo de quase todo mundo pelo consumo desses bens, mas infelizmente ao preço de uma patente desumanização do homem.

Nesse sentido, parece que estamos indo para um "beco sem saída". O que fazer, por exemplo, diante dessa tendência inabalável do saber especializado que ainda domina as ciências contemporâneas (apesar dos esforços isolados de certas comunidades para exercitar aquilo que chamam de multi ou interdisciplinaridade), e que, a essa altura, já não nos permite distinguir a especialização (necessária em sociedades complexas) do especialismo, variante que nos conduz irremediavelmente à alienação, pois está cada vez mais distante do sentido humano de nossas ações.

Um caso ocorrido há algum tempo ilustra bem essa preocupação. Marquei uma consulta com um médico ortopedista, grande amigo meu e muito respeitado aqui e fora do País, para tentar resolver um problema em minha coluna lombar. Fui muito bem recebido em seu consultório, mas mal comecei a descrever os sintomas, o médico me interrompeu dizendo mais ou menos o seguinte: "Medina, pode parar de falar porque isso não é comigo... Vou te encaminhar para um colega especializado em coluna lombar... Como você sabe, o meu negócio é joelho; e, portanto, não sei nada de coluna vertebral".

Casos como esse, todos sabemos, são comuns não só na medicina como também em muitas outras áreas de especialização, e reflete uma realidade que requer um repensar. São raras as pessoas que, tendo acesso aos privilégios da medicina e da civilização contemporâneas e seus avanços científicos e tecnológicos, aceitam ser examinadas por um clínico geral, se puderem recorrer a um especialista que vá direto a seu problema específico de saúde. Há, claro, um crescente número de pessoas (e isso é um bom sinal) que já começa a procurar soluções alternativas para seus problemas mas, por enquanto, esses casos representam uma minoria; são exceções se comparados com o que acontece no sistema hegemônico da medicina tradicional.

O mesmo fenômeno pode ser observado no esporte competitivo(*). Máximo rendimento e lucro unem-se para ditar as normas no mundo da competição. A ênfase nesse binômio costuma secundarizar, sistematicamente e cada vez mais, alguns princípios éticos básicos para a humanização do homem, levando o atleta a ser tratado como máquina, mercadoria ou produto descartável.

Paradoxalmente as chamadas ciências do esporte geram um conhecimento progressivamente mais detalhado e elaborado a respeito de seus diferentes meandros, ao mesmo tempo que nos afasta da melhor compreensão de suas dimensões genuinamente humanas. Produzimos, às vezes, atletas espetaculares sem nos darmos conta do processo de desumanização que envolve os rituais para sua produção.

O esporte, nesse sentido, ao invés de ser um agente dinâmico de aproximação da saúde integral, de educação libertadora ou de uma cultura corporal-esportiva que poderia promover a compreensão e a solidariedade entre as pessoas, mais parece seguir em direção contrária.

Como já vimos, há uma intima relação entre as forças e as práticas produtivas, culturais e sociais. E nessas correlações as forças econômicas predominam. Esquadrinhando essas inter-relações verifica-se que a história da civilização contemporânea e a evolução do esporte competitivo não são fenômenos dissociados: a tendência para valorizar-se, de forma quase absoluta, a performance e o lucro material ou financeiro é ainda uma "marca registrada" dos tempos atuais. Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que, de certa forma e em grandes linhas, o esporte (e o futebol) reproduz os valores dominantes da sociedade.

Não é sem razão, portanto, que o esporte de alta competição, nos moldes como é praticado hoje em dia, estimule, mesmo que de forma sutil, o doping, a violência, a mentira, a aparência, o individualismo, a alienação ou o nacionalismo exacerbado, provocando seqüelas ou traumatismos físicos e emocionais em seus praticantes, afastando-os de seu bem-estar físico, mental e social e sedimentando uma determinada visão e um determinado modelo de educação e cultura próprios de nossos tempos. Nesse sentido, o "Caso Maradona" talvez seja o modelo mais representativo: um dos jogadores de futebol mais talentosos de todos os tempos, hábil, genial, rico, "com o mundo a seus pés", e... de repente, infeliz e decadente.

Sob essa ótica, parece um tanto sem sentido afirmarmos, como dizem senso comum e mídia, que o esporte, por si só, possa significar saúde, educação e cultura, numa perspectiva de autêntico desenvolvimento humano. Na verdade, o esporte tratado descontextualizadamente em seus aspectos sócio-culturais ou sem uma clara noção de suas intenções subjacentes não pode representar muito mais do que um instrumento de manipulação e alienação ou de simples reprodução dos valores (positivos e negativos) vigentes.

(*) Como se sabe, o esporte pode ser entendido sob diversos ângulos. Não abordaremos, no contexto desta reflexão, as perspectivas de evolução do esporte enquanto fenômeno educativo (esporte escolar, por exemplo) ou ainda enquanto manifestação de lazer, quer como espetáculo, quer como prática de massas, que requerem outros registros de análise diferentes do adotado ao analisar-se o interior do esporte de rendimento.
Parte 3
O modelo de especialização tradicional das profissões, gestado nos séculos 19 e 20, está agonizante, mas ainda persiste no futebol profissional.

A fragmentação do futebol brasileiro

"Saber e não fazer... ainda é não saber."
(Pensamento Zen)

A propósito dessa problemática de fragmentação do conhecimento no interior do esporte competitivo, tema central deste ensaio, gostaria de discorrer, como exemplo, sobre o que vem ocorrendo com o futebol profissional brasileiro nas últimas décadas. Creio constituir-se em um bom referencial já que o Brasil conseguiu alcançar, neste período, um grande destaque no cenário mundial; fenômeno ao qual poderíamos chamar de "excelência de exceção", ou seja: futebol desenvolvido, surgido de um ambiente geral de subdesenvolvimento.

Favorecido por um traço cultural que valoriza e estimula a prática do futebol masculino desde a mais tenra idade (o futebol feminino vem evoluindo, mas ainda sofre enormes preconceitos), esse esporte conseguiu incorporar, em alguns momentos, os elementos básicos para a realização de trabalhos de bom nível técnico-competitivo, apesar das constantes influências negativas, advindas do nosso subdesenvolvimento econômico, social, cultural e científico, que costuma incluir, entre outros aspectos, uma condenável "especialização precoce", estimulando uma espécie de "robotização" dos meninos já a partir dos 5 ou 6 anos de idade.

Faremos uma análise exploratória da evolução do futebol brasileiro na perspectiva da composição de uma equipe técnica (Comissão Técnica*) de trabalho.

Optamos por esse tipo de enfoque por acreditar que, numa visão tecnicista e mecanicista ainda prevalecente no modelo científico que dá suporte à especialização esportiva, a Comissão Técnica representaria a síntese do saber (científico ou não) elaborado ou utilizado no interior de suas práticas.

Não obstante o estudo da composição da Comissão Técnica nos principais clubes de futebol brasileiro e na Seleção Nacional demonstrar grandes variações de tipos de especialistas em sua formação, é possível detectar, principalmente a partir da segunda metade do século passado (século 20), uma clara tendência que caracteriza a incorporação de novos conhecimentos necessários à sua evolução.

Acreditamos, assim, poder sedimentar as reflexões sobre a fragmentação do saber esportivo num terreno prático; fato este muito pouco explorado pela comunidade científica que pesquisa essa área entre nós: ou relata-se sobre a prática, enaltecendo-a ou, por outro lado, criticam-na, porém, sem maiores vínculos ou comprometimentos com a realidade.

A partir da década de 50, por exemplo, é cada vez mais sentida a necessidade da presença de um profissional encarregado pela preparação física dos jogadores de futebol. Essa especialização atinge a sua consagração e reconhecimento quando, em 1958, o Brasil consegue o seu primeiro título mundial, contando com a participação de um preparador físico.

Até a primeira conquista da Copa Jules Rimet pela Seleção Brasileira, o modelo básico de uma Comissão Técnica incluía, via de regra, um treinador, um massagista, um roupeiro e, às vezes, um médico abnegado que reservava algumas horas semanais para dedicar-se ao futebol. Nessa estrutura, todas as atividades desenvolvidas com os atletas eram determinadas pelo treinador, que centralizava o poder dentro da equipe de trabalho. Pelos conhecimentos técnico-científicos acumulados na época, e pela liderança natural que esse cargo exige, o treinador sentia-se suficientemente capaz de orientar todos os treinamentos, o tipo de alimentação, os planos de viagem e a concentração, as horas de sono dos atletas, o trabalho psicológico individual e do grupo, além de desempenhar suas atribuições específicas de escalar a equipe e orientá-la taticamente.

Depois de duas conquistas mundiais (1958 e 1962) começa a destacar-se uma formação (composição de Comissão Técnica) que realça as ações não só do preparador físico, como também do médico, que começa a se especializar em Medicina Esportiva e, assim, dar conta dos progressos ocorridos nessa área em outros lugares. O poder que define as ações da equipe já não emana, pelo menos de uma forma absoluta, do treinador - por mais autoritário que este possa ser - mas conta com a colaboração desses setores especializados. É o início da especialização no futebol profissional.

Esse modelo perdura até o início da década de 70, quando o sucesso alcançado pela seleção brasileira no México, conseguindo conquistar pela terceira vez a Copa do Mundo (e conquistando definitivamente a Copa Jules Rimet), reafirma o valor de um trabalho mais científico e que incorpora os conhecimentos, de diversas áreas afins necessárias ao esporte de alto nível; embora destacando sempre uma visão excessivamente técnica (tecnicismo), compatível com o pensamento e poder político deste período histórico da vida brasileira.

Assim, surgem Comissões Técnicas que, além do treinador, preparador físico, médico, massagista e roupeiro, exigem - e eventualmente incluem - outros especialistas em odontologia, fisiologia do esforço, nutrição, psicologia, treinamento de goleiros, fisioterapeuta, supervisão etc.

Como dar conta dessa demanda? Dentro da lógica adotada por essa tendência tecnicista, é quase ilimitada a necessidade da inclusão de novos profissionais no trabalho, caso queiramos acompanhar a evolução científica da qual fazem parte as ciências do esporte.

Como se não bastassem as dificuldades advindas da falta de recursos materiais e financeiros para sustentação dessas estruturas cada vez mais ampliadas, complexas e sofisticadas; da visão conservadora dos dirigentes que administram o futebol, geralmente resistindo às inovações que acompanham a evolução científica, tecnológica e cultural; da visão ortodoxa dos próprios técnicos, que no Brasil, em sua maioria, não têm tradição para entender que, além da intuição, da experiência ou da prática, o trabalho no futebol profissional exige permanente aprendizado que envolve estudo e aperfeiçoamento; enfrentamos uma dificuldade extra e mais complexa do que essas, e que está, sem sombra de dúvidas, nos levando ao "beco sem saída", citado na parte 2 destas reflexões. Essa dificuldade é, portanto, de ordem epistemológica e paradigmática, como tentaremos esclarecer na seqüência deste estudo.

(*) Chamamos de Comissão Técnica os membros da equipe de trabalho que lidam direta ou indiretamente com os atletas, colaborando de alguma forma com os resultados de sua performance (técnico, médico, preparador físico, massagista, dentista, etc.). Excluímos dessa comissão os membros que dão suporte puramente administrativo ao trabalho técnico que se realiza no futebol (administrador, secretário, tesoureiro, diretor de futebol etc.)

Parte 4
A divisão e a fragmentação do saber, com o conseqüente enclausuramento dos especialistas em seus próprios "guetos", com pouco diálogo multidisciplinar e nenhuma ação interdisciplinar, favorecem os "especialismos" e já não fornecem os elementos necessários às soluções dos problemas humanos fundamentais.

Paradoxos do futebol e do esporte de rendimento

"Vemos as coisas como elas são e perguntamos:
'Por quê?'
Sonho com coisas que nunca existiram e pergunto:
'Por quê não?"
(George B. Shaw)

A esta altura de nossa reflexão, creio não ser difícil constatarmos o paradoxo em que se constituem as possibilidades de progresso das ciências do esporte, uma das alavancas para que o futebol possa melhorar o seu nível, não só em seu aspecto técnico, mas sobretudo humano.

Vamos supor, num exercício de imaginação, que as equipes de futebol profissional no futuro possam contar, em suas Comissões Técnicas, com a retaguarda dos seguintes profissionais:
•estrategistas: especializados na orientação tática individual e coletiva de jogo;
•técnicos em fundamentos: especializados em desenvolver e aperfeiçoar pedagógica e cientificamente os gestos técnicos: chutes, passes, lançamentos, desarmes etc. (aqui poderíamos, inclusive, ter técnicos especializados apenas em chutes de bolas paradas*);
•preparadores físicos: especializados em desenvolver força, potência (especialista em musculação), resistência aeróbica (especialista em grandes distâncias**), resistência anaeróbica (especialista em curtas e médias distâncias), flexibilidade (especialista em técnicas de alongamento), velocidade (especialista em velocidade pura e reativa), além de coordenação motora que favoreça os gestos técnicos;
•treinador especializado em treinamento de goleiros;
•biomecânicos especializados em futebol;
•nutricionistas esportivos;
.psicólogos esportivos;
•fisiologistas do esforço especializados em futebol;
•ortopedistas, especialistas em coluna, joelho, pé etc.;
•médicos especializados em medicina esportiva e que saibam também cuidar de uma infecção, de uma virose, por exemplo de uma gripe (ou nesses casos serão necessários outros especialistas?)

E acrescentamos ainda:
•Odontólogos;
•Assistentes sociais;
•Calistas;
•Estatísticos;
.Especialistas em informática;

E a lista será tão grande quanto o número de especialidades que tenham, direta ou indiretamente, relação com o rendimento da, chamada por alguns, "máquina humana". Esta é a lógica se continuarmos aceitando e seguindo o modelo de produção de conhecimentos, calcado numa visão funcionalista de sociedade (incluindo-se aí os tecnicismos) que pressupõe que a soma das partes, por si só, forma um todo harmonioso e integrado.

Para aqueles que adotam este pressuposto, basta que cada um, dentro de sua especificidade e especialização, faça bem a sua parte. De uma forma mais ampla, entendem que se cada membro da sociedade desempenhasse dedicada e corretamente a sua função, toda ela também funcionaria em perfeita ordem, sem conflitos ou contradições.

É dessa forma que, acredita-se, as metas de máximo rendimento e lucro - prioritárias para essa concepção do esporte competitivo - poderiam ser alcançadas.

A tese que defendemos é que este modelo de produção de conhecimentos já não mais atende às nossas necessidades e inquietações. Vale dizer, este modelo paradigmático está agonizante (embora, tenhamos que reconhecer, que ainda se consegue resultados positivos dentro deste modelo, uma vez que ainda não o superamos).

Sem dúvida, o modelo científico que ainda dá sustentação ao desenvolvimento esportivo (como de tantas outras áreas de especialização do saber humano), neste limiar de um novo milênio, começa a se aproximar de sua exaustão.

A divisão e a fragmentação do saber, com o conseqüente enclausuramento dos especialistas em seus próprios "guetos", com pouco diálogo multidisciplinar e nenhuma ação interdisciplinar, favorecem os "especialismos" e já não fornecem os elementos necessários às soluções dos problemas humanos fundamentais.

Começamos a perceber que os setores dominantes mais conservadores e reacionários da sociedade - a quem interessam divisões e fragmentações - já não conseguem justificá-las sem reações.

Contudo, é preciso admitir que as resistências a esse modelo se dão, ainda, mais fora das instituições que dentro delas. As reações no interior das práticas esportivas são ainda incipientes e dispersas, já que todo sistema (institucional) tem seus mecanismos de auto-preservação, e sabe muito bem como eliminar ou colocar à margem do processo de seu funcionamento todos aqueles que se opõem de forma radical a ele e não compartilham de seus interesses dominantes.

A esse propósito, é curioso observar que, na própria comunicação interna entre os membros da Comissão Técnica no futebol, costuma-se respeitar limites bem estreitos e definidos. Há nessas relações uma ética interna que dificulta o diálogo entre às diversas áreas de especialização. Geralmente não são bem vistas atitudes onde, por exemplo, o médico questiona ou dá sugestões na orientação do preparo físico dos atletas ou onde o preparador físico realiza atividades onde se utiliza a bola de futebol como elemento pedagógico ou onde o treinador faz observações sobre a alimentação dos atletas ou ainda sugere um calendário mais racional para os campeonatos... E se justificam dizendo que "é preciso respeitar o especialista acima de qualquer outro valor". Afinal, "médico é médico, treinador é treinador, preparador físico é preparador físico e dirigente é dirigente". Enfim, cada um na sua...

Aliás, esse é também um dos problemas que enfrenta qualquer psicólogo na tentativa de introduzir seu trabalho no esporte e em especial no futebol. Numa perspectiva altamente hierarquizada e autoritária, que ainda prevalece nesse meio, as primeiras indagações que surgem são: quais são os limites de seus poderes de profissional e de sua autonomia sobre o grupo de atletas? Em que esses limites não interferem com os poderes e a liderança do treinador?

E os problemas dessa natureza se sucedem a todo o momento, colocando em xeque esse modelo paradigmático seguido pelas ciências que dão base ao esporte competitivo.

A era da informação, que o mundo contemporâneo começa a viver mais intensamente nos últimos tempos, tende a acelerar o processo de circulação do conhecimento produzido pela humanidade, criando-se, com isso, ambientes próprios ao surgimento de novas idéias e projetos, e estimulando as transformações.

Entretanto, nunca é demais reforçar que as mudanças de paradigma, ou de perspectivas de uma determinada prática científica, não se dão apenas na base das boas intenções, dos esforços individuais ou mesmo da competência técnica de algumas poucas pessoas em seu interior ou fora dela.

Não se pode, ingenuamente, alimentar esperanças de transformações radicais do modelo dominante, sem que haja simultaneamente esforços coletivos e pressões constantes para mudanças nas correlações de forças econômicas, políticas e culturais que atuam como "pano de fundo" de todas as ações institucionalizadas (seja na escola, na família, na administração pública ou em um clube de futebol).

Não se pode mudar a orientação de uma prática impunemente, se os interesses da instituição, onde essa prática se dá, apontam para outra direção. Não é fácil formar homens quando o sistema pede robôs. Não é fácil desenvolver atletas-cidadãos, críticos, conscientes, educados e criativos, quando o sistema pede apenas "máquinas" obedientes e automaticamente descartáveis, quando deixam de produzir o rendimento esperado.

(*) O Internacional de Porto Alegre, talvez, seja pioneiro no Brasil na introdução de um profissional (Chico Fraga, em 2001) para treinar seus jogadores em bolas paradas.

(**) Pelas exigências táticas atuais de jogo, um jogador de futebol - exceção feita ao goleiro - necessita percorrer, no mínimo, 8 mil metros em 90 minutos de partida. Tal qualidade requer conhecimentos técnicos especializados e aprofundados para desenvolver-se adequadamente esta valência física no atleta, e esses conhecimentos normalmente não são obtidos numa formação generalista do preparador físico ou professor de educação física.
Parte 5
Há um novo paradigma sendo gestado no interior de uma cultura emergente que já não aceita os parâmetros fornecidos por uma visão fragmentada das ciências do esporte e por uma decadente Educação Física, ainda definidores dos procedimentos científicos e pedagógicos que norteiam o esporte de alta competição.

Perspectivas para o século 21

"Quando nada parece ajudar, eu vou ver o cortador de pedra martelando
sua rocha talvez cem vezes sem que uma só rachadura apareça.
No entanto, na centésima primeira martelada, a pedra se abre em duas,
e eu sei que não foi aquela que conseguiu, mas todas as que vieram antes"
(Jacob Riis)

Este estudo exploratório sobre o conhecimento produzido no futebol, procurou interpretar, sob um determinado ângulo, a evolução deste esporte no Brasil. Tomando como marco de referência os anos de realização dos campeonatos mundiais de futebol que, de certa forma, servem de "termômetro" para que se possa aferir o grau de desenvolvimento de cada país praticante dessa modalidade esportiva, analisamos:

a) a estrutura funcional básica das diferentes formações das Comissões Técnicas através dos tempos, em termos de exigências práticas e teóricas de um certo número de profissionais necessário ao bom funcionamento dos trabalhos, segundo as perspectivas de performance de cada período, e de acordo com o paradigma que dá ênfase à inclusão crescente de novos especialistas, conforme o desenvolvimento das ciências do esporte, numa visão exclusivamente técnica (tecnicista);

b) a característica de poder de cada uma dessas estruturas de Comissão Técnica que define as possibilidades e a qualidade dos trabalhos executados através de certas decisões, planejamento e condução das ações dentro delas.

Esses são aspectos que, até aqui, têm sido muito pouco considerados e debatidos por aqueles que participam, direta ou indiretamente, da comunidade esportiva brasileira, geralmente pouco afeita a reflexões mais aprofundadas dos problemas que a cercam.

Hoje, mais do que nunca, nas estruturas organizacionais complexas, que incluem um grande número de pessoas e profissionais, é de fundamental importância que se defina claramente a contribuição que cada especialização pode dar no contexto de um trabalho coletivo. Valores, princípios, diretrizes ou pressupostos trazidos pelos profissionais especialistas para o âmbito da organização não podem comprometer o esforço conjunto (integrado) na direção de metas bem definidas.

Contudo, as práticas atuais concebidas a partir de uma visão mecanicista de mundo têm evidenciado conflitos e contradições insuperáveis, dificultando a efetivação de resultados que, ao mesmo tempo que atendam aos objetivos de auto rendimento técnico, contribuam para o desenvolvimento humano mais autêntico das pessoas envolvidas no processo (atletas, técnicos-especialistas, dirigentes, jornalistas, torcida).

Como sabemos, a própria estrutura social, gerada no seio do modo de produção capitalista, nos últimos dois séculos, sedimentou um modelo de divisão técnica do trabalho que estimulou o aparecimento e o crescimento das especializações e, dentro de uma perspectiva positivista-funcionalista, afastou (e afasta cada vez mais) do resultado ou produto final do trabalho, os seus próprios atores, através de suas ações. Não raro o que resta é a alienação, que nos afasta do processo de verdadeira humanização do homem.

Também conforme já vimos, qualquer tentativa de transformação desse paradigma dominante requer investimentos coletivos crescentes que devem extrapolar a dimensão estritamente técnica ligada ao planejamento, à metodologia ou à execução de certos procedimentos organizacionais.

Creio que à medida que tenhamos um número crescente de profissionais que alimentem um desejo profundo, compromissado com as modificações mais radicais e procurem desenvolver uma competência técnica que não se esgota em si mesma - mas implementa-se a partir de um conhecimento filosófico e científico contextualizado política, cultural e socialmente - poderemos exercer uma pressão cada vez maior que se contraponha ao poder ainda dominante nesse setor. Por enquanto, o modelo vigente no esporte competitivo carece de uma base epistemológica e antropológica que o sustente. O esporte não pode continuar perseguindo o alto rendimento, distanciando-se dos princípios básicos necessários ao desenvolvimento humano, no sentido dado no início dessas reflexões.

Apesar das crises de toda ordem que vivenciamos nos últimos tempos, insisto nas perspectivas promissoras de futuro. As condições objetivas de mudanças em nosso padrão cultural já estão presentes entre nós, embrionariamente. Há um novo paradigma (*) sendo gestado no interior de uma cultura emergente que já não aceita os parâmetros fornecidos por uma visão fragmentada das ciências do esporte e por uma decadente Educação Física, ainda definidores dos procedimentos científicos e pedagógicos que norteiam o esporte de alta competição.

Em um contexto mais amplo observa-se, em nível mundial, movimentos de pessoas e grupos que tendem a se multiplicar em busca de soluções alternativas dos problemas humanos e sociais e que, de certa forma, tentam resistir aos atuais interesses dominantes na economia, na política, na cultura e na ciência.

Uma parcela da humanidade já começa a perceber que, no espaço finito em que vivemos concretamente, ser humano, sociedade e natureza, são aspectos inseparáveis de um mesmo processo existencial, e que só adquirem sentido através da totalidade de suas inter-relações e interdependências.

Resta-nos saber em que velocidade a comunidade esportiva e, por extensão, do futebol, irão acompanhar esses movimentos sociais e culturais. Esperamos que a era da informação, que começa a se espalhar pelo mundo, possa fazer emergir a era do conhecimento (e da sabedoria) e, assim, ajudar-nos a acelerar essa tendência nos próximos tempos. De outro lado, gostaria que nossos sonhos fossem intensos o suficiente para iluminar o nosso cotidiano em busca de mais consciência, de uma prática esportiva mais saudável e que o futebol, em especial, sem perder seus encantos e sua magia, pudesse também contribuir efetivamente para a emancipação da humanidade.

(*) A este respeito é preciso conhecer a obra do filósofo Manuel Sérgio. Aos iniciantes nessa área aconselho a leitura de Educação Física ou ciência da motricidade humana. Papirus, Campinas, 1989 e Para uma epistemologia da motricidade humana. Compendium, Lisboa, 1987.